COMO ESTAMOS USANDO A COMIDA PARA RESPONDER ÀS EMOÇÕES DESPERTADAS PELA PANDEMIA

  

(Foto: Francine Tuczynski)

Transtornos alimentares (Foto: Francine Tuczynski)

Como estamos usando a comida para responder às emoções despertadas pela pandemia

Episódios de compulsão alimentar seguidos por aumento de peso e culpa; especialistas ouvindo e tratando (a distância) sofrimentos psíquicos que se manifestam na maneira como comemos; um isolamento que impede de ver e ser visto. Marie Claire investiga como estamos usando a comida para responder às emoções despertadas pela pandemia

No dia 17 de janeiro de 2021, a apresentadora Mariana Goldfarb, de 31 anos, foi ao Instagram, onde registra 1 milhão de seguidores, para expor um tema delicado e, até então, particular: sua relação com a comida. Entre os episódios que recordou, um dos mais marcantes foi ganhar 12 quilos ao estrear como apresentadora do Canal OFF, em 2013, e as comparações que sofreu ao se tornar conhecida do grande público, nos anos seguintes. “Me senti subjugada. Achava que, se fosse perfeita, poderia ser digna de estar ali. Comecei um processo muito estranho de ir parando de comer. Quanto mais magra ficava, mais elogios recebia e a balança pesava mais para ser amada”, contou na rede social. Vieram as consequências. “Parei de menstruar, meu índice de gordura chegou a ser menos de 5%, o que é péssimo para a saúde da mulher. Mas eu fechava campanhas publicitárias e ficava feliz. Mas alguém é feliz sentindo fome? Acho que não. Passava mal na academia após a aula de spinning. À noite, comia uma barra de chocolate imensa, dessas de aeroporto, e depois vomitava. Isso aconteceu três vezes, até que dei uns tapas na cara, foi uma acordada. Busquei uma terapeuta, com a qual estou até hoje.”

Exatamente cinco meses depois, quando fala à Marie Claire, conta que tem um discurso ainda mais maduro sobre alimentação, marcado pela generosidade consigo mesma, mesmo diante dos abalos provocados pela pandemia. “Engordei nos primeiros meses, mas de choque. Fiquei ansiosa. Passei por períodos de compulsão, em vez de anorexia. É interessante perceber que, para mim, toda restrição leva a uma compulsão, fico muito vulnerável”, diz. Não chegou, no entanto, a ser algo totalmente fora de controle. “Acontecia de eu buscar uma guloseima e depois me sentia mal.” Ela conta que, à noite, comia mais do que precisava simplesmente por estar dissociada, sem prestar atenção no que estava comendo. Resultado: “No dia seguinte, costumava compensar fazendo mais exercícios do que deveria e comendo menos do que deveria. Isso vira um ciclo vicioso, entende?”.

Nesses momentos, como tábua de salvação, Mariana retornava ao que havia entendido sobre si mesma com muito estudo e terapia. “A pandemia é um período difícil coletivamente, mas tenho chegado a muitas respostas. Sei que estava indo contra a minha saúde e a minha vida”, relata. Entre suas descobertas, perceber o que estava fazendo consigo mesma e a imagem que estava passando nas redes sociais foi um dos pontos mais importantes. “É uma responsabilidade enorme”, conclui.

Com outra história para contar vem a influenciadora Alexandra Gurgel, seguida por 1 milhão de pessoas no Instagram, onde trata, sempre muito aplaudida, de corpo livre. “A gordofobia é tão entranhada na sociedade que as pessoas associam comer a um vício, a comida como uma vilã. Simplesmente porque, na quarentena, você está entediada, não tem o que fazer, e vai comer. Isso se tornou uma atitude de pessoas gordas. Além do que engordar ao longo de um mês parece tornar possível ganhar 50 quilos. Olha, a forma de comer compulsiva está associada a comer de forma restritiva, porque, quando você come, você quer comer tudo”, avalia, em vídeo publicado no IGTV de sua conta. “Eu era compulsiva quando fazia dieta. Estou no quinto ano sem dieta e não tenho nenhum episódio de compulsão, meu peso não muda. Só mudou quando tive uma crise de ansiedade e aí eu emagreci. Descobri que não sou compulsiva”, completa.

Médicos brasileiros têm notado em seus consultórios justamente o aumento de episódios relacionados à compulsão, enquanto pesquisadores investigam os reflexos da pandemia sobre o modo como estamos comendo (ou não). O Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) prevê a divulgação no segundo semestre de 2021 dos resultados de uma pesquisa coordenada pela professora Cristiane Marques Seixas, que trabalha com a hipótese de crescimento do número de obesos após o confinamento e questiona até que ponto práticas famosas como o mindful eating – algo como comer de forma consciente e com atenção plena – trazem resultados concretos para o tratamento de distúrbios alimentares ou são estratégias superficiais.

No Ambulim (Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), principal núcleo de tratamento do assunto na América Latina, ainda não foi lançado nenhum estudo que tenha avaliado o aumento de distúrbios alimentares na pandemia. “No entanto, do ponto de vista teórico, é provável, porque todos os quadros psiquiátricos – e a compulsão não é exceção – pioram quando o indivíduo é submetido a estresse. Vemos pacientes que estavam melhorando agravando os quadros. O que a gente tem certeza é de que houve aumento da obesidade e do sobrepeso”, afirma o professor doutor Tákis Cordás, coordenador do Ambulim.

Por lá, existe a única enfermaria especializada em transtornos alimentares do Brasil, hoje sem vagas por causa dos leitos destinados ao tratamento da covid-19. O atendimento público, via SUS, tem se concentrado no online (presencialmente, somente 30% dos pacientes conseguem um horário), “uma ferramenta útil, mas empobrecedora”, avalia Tákis. O psiquiatra recomenda que quem sofre com os transtornos não abandone o tratamento, mesmo que com menor impacto na medida em que não é presencial.

“No nosso ambulatório, o Núcleo de Estudos e Assistência em Obesidade e Transtornos Alimentares (Neota), da Universidade de Franca, aumentou substancialmente o número de pacientes com compulsão alimentar e obesidade, além das comorbidades psiquiátricas associadas, como depressão, transtorno de ansiedade, entre outros”, diz a professora doutora Marina Manochio, nutricionista e coordenadora do Neota. “A pandemia afetou os hábitos alimentares. A estocagem de comida, que pode favorecer o comer excessivo, por exemplo, é um tipo de escape dessa situação”, continua.
Nos Estados Unidos, a National Eating Disorders Association (associação nacional que concentra estudos e dados sobre distúrbios alimentares) registrou um aumento de 41% nas mensagens via celular para médicos, terapeutas e nutricionistas e busca por ajuda online em janeiro de 2021, em comparação ao mesmo período no ano passado.

Transtornos alimentares (Foto: Francine Tuczynski)

Transtornos alimentares (Foto: Francine Tuczynski)

Dentro do trauma
“A alimentação é atravessada pelas emoções. E hoje existe essa incerteza sobre quando a pandemia vai terminar, existem o desamparo, o luto, um estado de exceção. A obesidade pode ser outra pandemia dentro da pandemia. Estamos no trauma”, defende Joana de Vilhena Novaes, pós-doutora em psicologia médica e psicologia social pela Uerj, além de coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Desde maio, Joana oferece no laboratório um curso de extensão sobre distúrbios alimentares na pandemia – epidemia que tem observado nos atendimentos clínicos. Está também produzindo um livro em que são cruzados dados do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho e da clínica social de psicologia, ambos da UFRJ, para descobrir quantas pessoas se tornaram obesas de março de 2020 para cá. Isso porque as mudanças na rotina, na renda, o tédio, o delivery e a alteração na noção de tempo são alguns dos muitos fatores que promovem mudanças na dieta e podem alterar o peso. Em sua observação, para cima. “As pacientes com dismorfia corporal [que têm uma percepção distorcida da imagem] estão mais tranquilas, muito pelo fato de aparecerem somente nas telas, do colo para cima, usando filtro. E a moda ficou mais relax, não é preciso se maquiar, uma transição capilar é bem-vista, assim como gravar de pijama, e nem é possível seguir uma rotina extenuante de exercícios”, afirma. Ela explica que o isolamento tem efeitos sobre a exposição, o ver e ser visto, o que está diretamente ligado aos distúrbios alimentares, que são patologias narcísicas. “Não tive nenhum caso de anorexia e bulimia mais sério este ano, mas se nota o comer, beber e fumar em demasia. A compulsão está ali, só mudou o objeto.” A estratégia, continua Joana, é nomeada por alguns pacientes como “redução de danos”. Ou seja, usar a comida como válvula de escape para lidar com o medo da morte, a instabilidade emocional e financeira, a falta de informação e de vacina. E tratar de perder peso depois – estratégia popularmente conhecida como “dos males, o menor”.

Alexandra Gurgel desenha: “Se você vivesse numa bolha, teria vontade de mudar? De se depilar? De fazer intervenções no corpo? Você teria vontade se ninguém a visse?”. Para ela, é importante aliviar a pressão de gostar de si mesma, de se aceitar. “Amarse não é uma necessidade urgente no meio de uma pandemia”, afirma. Joana entende o corpo como um capital. Em tempos de isolamento, consumimos corpos e colocamos o nosso corpo para consumo via redes sociais. Inclusive, para ela, as plataformas de streaming se tornaram outra compulsão. O uso recreativo se tornou profissional. Se, para a psicanálise, a imagem corporal é a identidade de uma pessoa, pode-se imaginar o impacto que essa explosão de aplicativos que misturam comunicação e beleza promove. “É uma busca constante pela validação. As doenças da beleza há décadas são um sintoma social, e não uma questão subjetiva individual. É o modo de sofrer contemporâneo”, explica. Há cinco anos, a jornalista e escritora Daiana Garbin se dedica aos transtornos alimentares, em parte por ter sofrido isso na pele, em parte por se tornar uma voz acolhedora na internet desde que tornou pública sua experiência. “Para mim, elas contam as dores que não contam para outras pessoas por vergonha”, diz. Sem medicação há quase três anos, ela passou por um teste de fogo nesta pandemia: a gravidez e a amamentação de sua primeira filha, e hoje escuta relatos sobre recaídas de mulheres na mesma situação”, conta ela, que tem 584 mil seguidores no Instagram. “Noto que, quando perdemos a oportunidade de lazer e o contato humano, a comida ganha proporção de único prazer na vida. Para muita gente, já era difícil antes. E, sempre que você passa por um grande desafio ou abalo, a comida vem como alívio e anestesia.” No caso dela, que sofreu um transtorno não especificado com características de anorexia e bulimia, a compulsão antecedia um terrível sentimento de culpa e uma sensação de fracasso.

A jornalista encontrou um caminho para a cura justamente falando sobre o assunto. “A terapia é um tratamento longo. É como pegar um novelo de lã e ir desfazendo os nós da nossa vida, abrindo caixinhas dolorosas do passado. Eu entendi, depois de todos esses anos de tratamento e pesquisa, que o corpo fala de dores que não sabemos nomear”, diz.
A cura, demorada, é validada pela atriz Cássia Kis, que também é ex-paciente de bulimia. Em seu caso, os sintomas começaram na segunda metade dos anos 1980 até o nascimento de seu primeiro filho, em 1995. Depois, episódios se manifestaram várias vezes. “Durante muito tempo, achei e fui convencida de que essa patologia não tinha cura, e hoje estou convicta do contrário”, afirma. O caminho trilhado para enfrentar seus fantasmas foi bem parecido com o de Daiana: enfrentando-os de frente. “Precisamos ter a coragem de reconhecer nossas precariedades. Afinal de contas, agora, vejo a vida como uma escola, onde conhecemos as nossas histórias e as transformamos. Esse aprendizado conserta tudo, podemos mudar o nosso destino, somos responsáveis por isso. Estou feliz com todas as dificuldades que passei, e essa foi uma delas”, completa a atriz.

A psicanalista Maria Teresa G. de Lemos, autora do livro A Língua que Me Falta (editora Mercado das Letras, 261 págs., R$ 38,90), ajuda a compreender por que as mulheres (mas não só elas) têm, em geral, uma relação importante com a imagem do corpo. “A maioria cuida da própria imagem como cuidaria de um bebê frágil, em risco”, explica. “Infelizmente, não fazem o mesmo com seu corpo. Por dependerem da própria imagem, sofrem com suas vacilações. Isso não é apenas obra dos valores culturais, mas consequência de experiências vividas como menina.” Para ela, não existe nada mais instável que a imagem. “Logo, depender disso dá muito trabalho. Essa condição de dependência amorosa da própria imagem é muitas vezes entendida (pelas próprias mulheres) como narcisismo, o que não passa de mais um desconhecimento relativo ao feminino”, conclui.

Existe saída? “Também gostaria de saber! Traduziria essa pergunta por: como não adoecer? Pessoalmente, minha saída imediata é sempre a sublimação. E sublimar é colocar o corpo a serviço de uma obra, qualquer que seja”, responde Maria Teresa. Voltemos, então, a Cássia Kis, a Daiana Garbin, a Alexandra Gurgel e a Mariana Goldfarb. Cássia sublimou pela via da memória, Daiana por meio da pesquisa e da comunicação de grande alcance. Alexandra se tornou fundadora do Movimento Corpo Livre e lançou o livro Pare de Se Odiar (editora Best Seller, 241 págs., R$ 29,90). Mariana se tornou estudante de nutrição, e afirma que quer desmistificar alimentos proibidos. Em que pesem seus discursos bem resolvidos, existe aqui uma unanimidade: para nenhuma delas foi fácil.

Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/Comportamento/noticia/2021/09/como-estamos-usando-comida-para-responder-emocoes-despertadas-pela-pandemia.html


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