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Na pandemia, consumo de ultraprocessados quase dobra em faixa etária com maior risco
No ano passado, o consumo desse tipo de alimento representava 9% da dieta dos entrevistados e no levantamento feito em junho de 2020 saltou para 16%. Os ultraprocessados são apontados por especialistas como os principais responsáveis pelo aumento da obesidade, fator de risco para a Covid-19.
Também houve aumento entre jovens de 18 a 24 anos, de 29,6% para 31,3% da dieta total. Nas outras faixas, intermediárias, as oscilações não foram significativas. Segundo a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), divulgada na semana passada, 70% dos brasileiros com idade entre 40 e 59 anos estão além do peso considerado saudável, dos quais 34,4% estão obesos.
O Idec entrevistou, com o Datafolha, 1.214 pessoas com idades entre 18 e 55 anos de todas as classes econômicas e regiões do país em junho, retratando os hábitos alimentares bem no auge da pandemia.
Pesquisa Nacional de Saúde : Um a cada quatro brasileiros adultos está obeso
No recorte de renda, o aumento mais expressivo foi na classe C, cujo consumo, considerando todas as faixas etárias, passou de 21,1% em 2019 para 27,7% em 2020. Entre as classes A e B, o índice foi de 19,7% para 21,6% e, nas classes D e E, se manteve estável em 21%.
Não são 'comida de verdade'
Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), os alimentos ultraprocessados são "formulações industriais elaboradas principal ou totalmente a partir de substâncias derivadas de componentes dos alimentos, além de aditivos usados para imitar e intensificar as qualidades sensoriais dos produtos".
Os ultraprocessados não são, portanto, "comida de verdade", como pontua a professora do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens), Daniela Canella.
A pesquisadora salienta que eles são compostos, basicamente, por substâncias como gordura, açúcar, amido, farinha e sal. Por isso, são extremamente palatáveis e deixam as pessoas acostumadas com sabores muito doces ou salgados.
— Não é comida de verdade, há quem questione se deveriam ser chamados de alimento, são produtos. Reproduzir as receitas criadas pela indústria, por exemplo, não é viável, pois são necessários processos industriais específicos, e os próprios ingredientes não estão disponíveis em casa ou no mercado — afirma Canella.
A especialista aconselha olhar bem os ingredientes nos rótulos. Quanto maior o número deles e mais incomuns, maior a chance de se tratar de um ultraprocessado.
Vale, também, verificar a ordem apresentada, pois os primeiros, enfatiza a acadêmica, são os que estão em maior quantidade no produto. Também deve-se desconfiar das embalagens que prometem adição de vitaminas, por exemplo.
Mesmo alimentos que parecem saudáveis, como barrinhas de cereal ou alguns iogurtes, podem ser ultraprocessados. Procurada pela reportagem, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) não se manifestou.
Salgadinhos e biscotos salgados
Na pesquisa do Idec, salgadinhos de pacote ou biscoitos salgados foram os produtos campeões de consumo entre os ultraprocessados, subindo de 30% para 35% no período.
O segundo lugar no ranking ficou para a categoria que inclui margarina, maionese, ketchup e outros molhos industrializados, cujo consumo subiu de 50% em 2019 para 54% dos entrevistados em 2020.
Durante a pandemia, os homens comeram mais salgadinhos de pacote ou biscoitos salgados, um aumento de 6%. Já as mulheres aumentaram o consumo de margarina e molhos industrializados (crescimento de 7%), de embutidos, como presunto, mortadela e linguiça (6%), e de pratos prontos e congelados, como macarrão instantâneo, sopa de pacote ou lasanha congelada (5%).
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Para a nutricionista Ana Paula Bortoletto, do Idec, o aumento do consumo de ultraprocessados durante a pandemia foi provocado, principalmente, por quatro fatores: o momento sensível na vida das pessoas, que as deixou mais suscetível ao apelo de se consumir alimentos menos saudáveis; uma maior exposição à publicidade dos ultraprocessados graças ao aumento de tempo de tela em casa; a preocupação em estocar alimentos para evitar idas frequentes ao mercado devido ao temor da infecção pelo vírus; e o fato de ser uma alimentação "mais fácil".
A professora Miriam Louback foi uma dessas pessoas que se renderam aos ultraprocessados na pandemia. Ao reduzir as idas ao supermercado, para onde tem que levar os dois filhos, ela passou a ter alimentos perecíveis apenas de 15 em 15 dias. Assim, as frutas deram lugar aos biscoitos, especialmente os salgados e recheados.
— Esses biscoitos eu não costumava comprar, e agora estou comprando com frequência. Acho que isso já está mudando o paladar da minha filha, que agora está mais seletiva para comer. E eu entrei na onda, acabo comendo biscoito com ela enquanto vejo TV. Já engordei 8 kgs nessa pandemia — conta a professora que também apela para os sucos concentrados e em pó para os filhos, já que o integral é muito mais caro.
Praticidade questionada
Porém, o discurso de que os ultraprocessados são "mais práticos" é, para a nutricionista do Idec, resultante de estratégia de venda, que deve ser questionada:
— A praticidade tem dois lados. Ela está associada ao apelo do marketing. É mais prático abrir um pacote de salgadinho ou comer uma banana ou maçã? E precisamos pensar que ela também desvaloriza o cozinhar e nem sempre vale a pena para a saúde.
Ana Bortoletto também lembra que a pesquisa serve como um alerta para se pressionar por políticas públicas que promovam a alimentação saudável:
— Reforça a importância de se valorizar o Guia Alimentar do Ministério da Saúde, que tem bases científicas sólidas, mas hoje é atacado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, sob pressão de setores da indústria. É preciso facilitar um maior acesso aos alimentos saudáveis e desestimular os ultraprocessados — afirma Bortoletto.
O Guia Alimentar para a População Brasileira é uma publicação do Ministério da Saúde, elaborada em conjunto com o Nupens, da USP, e traz orientações para uma alimentação mais saudável, em sintonia com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Opas e governos de países desenvolvidos.
Na última versão, de 2014, traz a classificação de alimentos in natura e ultraprocessados. A ministra Tereza Cristina, da Agricultura, criticou o documento recentemente e pediu sua revisão. Houve forte reação da comunidade científca e da sociedade, em defesa das diretrizes do Guia.
Diferença de custo
No Brasil, o custo de uma alimentação constituída majoritariamente por alimentos ultraprocessados ainda é superior ao de uma dieta feita a partir de ingredientes in natura, diferentemente dos Estados Unidos, onde os ultraprocessados têm forte apelo econômico e, por isso, já representam 60% do que a população ingere.
Estudo feito pelo próprio Idec, com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Nupens, divulgado no começo do ano, indica, porém, que alimentos saudáveis recomendados pelo Guia Alimentar devem se tornar mais caros do que alimentos não saudáveis a partir de 2026, quando o preço dos dois grupos deve se igualar.
Até 2030, a previsão é a de que os preços dos alimentos in natura e minimamente processados continuem crescendo, enquanto os dos ultraprocessados decresçam, invertendo a situação.
— As pessoas acham que o ultraprocessado é "baratinho", mas não é verdade. Custa mais caro comer lasanha congelada, nugget ou macarrão instantâneo do que comida de verdade. Mas a indústria consegue controlar os preços, usando ingredientes de qualidade pior. Assim, a tendência é que eles fiquem mesmo mais baratos. As pessoas precisam mediar sua alimentação. Eventualmente todo mundo come algum ultraprocessado, mas é preciso avaliar a quantidade consumida e o impacto na saúde — afirma Daniela Canella.
Fonte:https://oglobo.globo.com/brasil/na-pandemia-consumo-de-ultraprocessados-quase-dobra-em-faixa-etaria-com-maior-risco-24717328
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