VIVEMOS ENTRE PEÇONHAS : VENENOS PARA DAR E VENDER

Venenos para dar e vender
Vivemos entre peçonhas
Vivemos rodeados de substâncias venenosas. Pior ainda, todos os dias inalamos ou consumimos pequenas doses de compostos tóxicos. Vejamos como nos afectam e qual a utilização letal que lhes foi dada ao longo da história.
A tinta da revista que tem nas mãos contém uma pequena dose de chumbo, um metal que se torna extremamente tóxico se for ingerido. Se tiver uma secretária de madeira, poderá integrar um pouco de arsénico para evitar que as térmites a devorem, e o mesmo veneno está presente, em pequenas quantidades, nos telemóveis. No ar que respiramos, flutua monóxido de carbono, um gás que se transforma, em doses elevadas, num veneno invisível e letal. Além disso, há cianeto nos móveis e objectos de plástico que contêm poliuretano, e mercúrio nas pilhas dos relógios, nas lâmpadas fluorescentes e nas obturações dos molares.
Ainda não acabámos. Expomo-nos, diariamente, a diferentes toxinas quando nos sentamos à mesa. Nas batatas, por exemplo, há solanina, um fungicida e pesticida natural que o tubérculo utiliza para se proteger e que, além de ser responsável por um ligeiro sabor amargo, pode exercer efeitos neurotóxicos ou causar lesões gastrointestinais se for consumido em excesso. Muitos fungos e cogumelos comestíveis incorporam uma substância, a amatoxina, que pode destruir o fígado.
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Pequenas doses

Mais ainda: ingerimos, todos os dias, entre 12 e 50 miligramas de arsénico às refeições, embora os japoneses, com uma alimentação mais rica em peixe e moluscos, possam consumir até 140 miligramas. Todavia, o aspecto mais alarmante da gastronomia nipónica é a elevada concentração de mercúrio que determinadas variedades de sushi contêm, nomeadamente as de atum vermelho, que podem, segundo um estudo publicado na revista Biology Letters, tornar-se perigosas para a saúde. Quanto à água da torneira, é enriquecida com flúor nos Estados Unidos, na Ásia e em alguns países da Europa, com efeitos nocivos sobre o cérebro, embora aja na prevenção das cáries.
Definitivamente, estamos rodeados de potenciais venenos. No entanto, como sublinha o divulgador científico australiano Peter Macinnis no livro Poisons, “não podemos classificar como veneno qualquer substância que destrua a saúde ou a vida de um organismo: embora não sejam produtos tóxicos, beber 100 chávenas de café ou ingerir 250 gramas de sal de uma assentada também poderia dar cabo de um homem adulto”. Por isso, Macinnis propõe especificar um pouco e afirma que “veneno é uma substância que causa doença ou morte mesmo tomado em pequenas quantidades”.
Esta definição enquadra na perfeição o referido mercúrio, um metal que pode provocar a loucura e as contínuas perdas de memória que afectavam Isaac Newton (1643–1727). Tal como muitos outros cientistas da sua época, o físico inglês sonhava transformar o mercúrio em ouro e, enquanto se consagrava às experiências, ficou intoxicado. Os sintomas eram inequívocos: insónia, agressividade, perda de apetite, surdez… Segundo análises forenses ao seu cabelo, acumulava, quando morreu, 73 partes por milhão de mercúrio no organismo (o valor considerado normal é de 5 ppm). Felizmente para o físico, as coisas ficaram por ali: se tivesse acumulado um pouco mais de metal no sangue, além de perder repentinamente todos os dentes, teria sofrido convulsões e lesões nas ligações entre neurónios. Em seguida, os rins teriam paralisado por completo.
A mesma fatalidade poderia ter acontecido ao presidente norte-americano Abraham Lincoln (1809–1865). Segundo demonstrou, há uma década, o historiador médico Norbert Hirschhorn, receitaram-lhe um comprimido conhecido como “pílula azul”, que era utilizado para tratar a depressão. Continha mercúrio em proporções verdadeiramente perigosas: 9000 vezes acima dos actuais limites de segurança. No entanto, os médicos recorriam ao medicamento há séculos para aliviar os males dos seus pacientes. O czar Ivan, o Terrível (1530–1584) tomava-o para tratar a sífilis; o astrónomo Tycho Brahe (1546–1601) morreu intoxicado com o mercúrio dos medicamentos para tratar problemas da próstata.
Napoleão Bonaparte (1769–1821) começou a tomar um anti-séptico intestinal à base de calomelano (cloreto de mercúrio) à sua chegada à ilha de Santa Helena, embora o que talvez tenha posto fim à vida do imperador francês seja outro elemento da tabela periódica: o arsénico. Depois de estudar, através da espectroscopia, uma amostra do cabelo de Napoleão obtida após a sua morte, Roger Martz, químico do FBI, determinou que alguns fios continham mais de 30 ppm de arsénico (ac­tual­mente, é considerado normal um máximo de 1 ppm). O mais estranho do caso é que Ivan Ricordel, do Laboratório da Polícia de Paris, obteve em amostras anteriores (1805, 1814, 1816…) valores que oscilavam entre 100 ppm e 5 ppm.
Estas variações não parecem ajustar-se a uma tentativa de homicídio, pelo que os investigadores chegaram à conclusão de que o arsénico que tinha andado a envenenar o imperador provinha do “verde de Schee­le”, um pigmento usado no papel com que se revestia as paredes naquela época e que contaminava a atmosfera do interior das casas, em especial os espaços pouco arejados e húmidos.
No mesmo sentido, um artigo publicado na revista The Lancet afirmava que o papel utilizado até ao século XIX para forrar uma divisão de tamanho médio incluiria 30 gramas de arsénico, quantidade mais do que suficiente para matar cem pessoas. Esse facto poderia explicar o motivo pelo qual Napoleão sentia tantas dores de estômago quando vivia em Santa Helena, embora ainda não se saiba ao certo se foi o pigmento que o matou.
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A arma dos fracos

Contudo, embora seja possível que o envenenamento de Bonaparte fosse acidental, o mesmo não se poderá dizer dos quatro maridos de Mary Ann Cotton, a enfermeira britânica e assassina em série que conseguiu desfazer-se, entre 1860 e 1873, de uma vintena de pessoas com arsénico, incluindo os maridos e os seus onze filhos. Foi fácil a Mary Ann cometer os crimes. Como sublinha ­Macinnis, “o veneno é uma das poucas armas que o fraco pode usar contra o forte”: os sintomas da intoxicação por arsénico, como vómitos e diarreia, são comuns a outras doenças e, por conseguinte, difíceis de diagnosticar.
Talvez por isso, a família italiana renascentista dos Bórgia utilizava o mesmo composto na fórmula de La Cantarella, uma estranha poção venenosa que também continha fósforo e cobre e com a qual eliminavam, de forma discreta, os seus inimigos. O arsénico era também o principal ingrediente da água-tofana, com a qual foram cometidos, na Sicília e em Itália, 600 homicídios por encomenda, incluindo os de dois papas. A partir de 1836, quando o químico James Marsh concebeu um método forense para se poder detectá-lo, a utilização criminosa do arsénico diminuiu consideravelmente. Actualmente, só causa intoxicações em algumas profissões ou por acidente, na indústria produtora de cobre e na agricultura.
Outro clássico entre os venenos é o cianeto, uma substância que impede a distribuição adequada de oxigénio, pelo que as células morrem asfixiadas. Wallace Carothers, o inventor donylon, suicidou-se, em 1937, com um cocktail de cianeto de potássio e limonada. Outro génio, Alan Mathison Turing, pai da teoria da computação, também escolheu este veneno para pôr fim à vida, em 1954: impregnou de cianeto uma maçã. E foi cianeto de hidrogénio que os nazis utilizaram durante a Segunda Guerra Mundial para perpetrar os assassínios em massa nas câmaras de gás.
É igualmente do lado sombrio da tabela periódica que se situa o chumbo, metal responsável, segundo demonstrou, há um par de anos, Christian Reiter, perito forense de Viena, pela morte de Ludwig van Beethoven, em 1827. Parece que o compositor teria começado a ficar intoxicado, três meses antes de falecer, por causa de sais expectorantes tomados para tratar uma pneumonia. O lento envenenamento provocou-lhe saturnismo, uma doença cujos sintomas coincidem com os documentados na sua biografia: cólicas, dores articulares, depressão, cefaleias e alterações comportamentais. O composto afectou de tal modo o génio que já foi sugerido que, se estivesse de boa saúde, talvez ele não tivesse criado aquela que é, seguramente, a sua obra mais conhecida, a Nona Sinfonia.
Outro elemento que convém recear é o tálio. Os serviços secretos sul-africanos utilizaram-no, em 1990, para tentar assassinar Nelson Mandela. O sulfato de tálio foi também a arma incolor que os espiões de Saddam Hussein escolheram para eliminar alguns dissidentes, e há suspeitas de que a CIA pensou utilizá-lo para intoxicar o presidente cubano Fidel Castro. Os sintomas do envenenamento com tálio são semelhantes aos de uma gastroenterite, mas, depois, provoca terríveis danos neurológicos.
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Assassinos vegetais
Além destes compostos, os assassinos de luvas utilizaram, ao longo da história, substâncias mortíferas extraídas de numerosas plantas. Em Atenas, o veneno oficial era a cicuta, obtida da planta Conium maculatum. Foi com ela que Sócrates pôs fim à vida. O curare, que se extrai de diversas plantas, era usado pelos povos indígenas do Amazonas para impregnar os dardos com que paralisavam presas e inimigos. Por sua vez, o meimendro branco, mais conhecido como “flor da morte”, é dez vezes mais letal do que a mordedura de uma cobra.
A rainha das intrigas policiais, Agatha Christie, escolheu a estricnina, um veneno obtido da semente da árvore Strychnos nuxvomica, para a sua primeira obra, O Misterioso Caso de Styles. Contudo, o veneno natural mais poderoso é a ricina. Este alcalóide que se obtém das sementes do rícino, Ricinus communis, impede as células de sintetizar proteínas; nessas circunstâncias, estas optam por suicidar-se através de apoptose. Basta um miligrama de ricina para exercer um efeito letal, e não há antídoto.
No entanto, parece que ainda nem tudo foi inventado em matéria de venenos. Podemos encontrar o exemplo mais recente disso na morte do ex-agente do KGB Alexander Litvinenko, envenenado, em Novembro de 2006, num restaurante de Londres, com um isótopo radioactivo, o polónio 210. A imagem de Litvinenko prostrado numa cama sem um único fio de cabelo na cabeça, a morrer lentamente, impressionou o mundo inteiro.
Através de um relatório elaborado pouco tempo depois ficámos a saber que a ingestão ou inalação de uma quantidade excessiva pode ter as mesmas consequências do que ter ficado exposto à radiação em Hiroshima; e que não há nada a fazer quando a radiação parte do interior. Os primeiros sintomas são a queda do cabelo e problemas gastrointestinais. Em seguida, o fígado e os rins colapsam e o metabolismo e a medula óssea sofrem uma paralisia. A morte produz-se por falência multiorgânica.
Ainda mais surrealista foi a tentativa de assassínio do presidente ucraniano Viktor Yushchenko, em 2004, que chegou a adoecer com gravidade mas conseguiu salvar a vida por os assassinos terem calculado mal a dose de veneno a administrar-lhe. Após semanas de exames, os médicos chegaram à conclusão de que o seu organismo estava cheio de dioxina, um composto organoclorado muito tóxico, provavelmente fabricado na Rússia ou nos Estados Unidos. Um estudo publicado na revista The Lancet, em 2009, revelou que as dioxinas eram eliminadas de forma extremamente lenta do corpo do dirigente. Levou mais de três anos a expulsar metade. O pior, como assinala Martin McKee, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, é que, se ele tivesse efectivamente falecido, ninguém teria suspeitado de que se tratara de um envenenamento.
E.S.

Dez tóxicos de trazer por casa
Antimónio – Os fósforos, os vidros coloridos, as garrafas de plástico e certos vernizes contêm este elemento semimetálico cuja ingestão desencadeia vómitos súbitos e violentos. Se for absorvido, provoca dores de cabeça, fraqueza e depressão.
Arsénico – Utiliza-se para fabricar componentes electrónicos e em insecticidas. Este semimetal cinzento-prateado produz vómitos, espasmos, diarreia, manchas na pele e perda de peso.
Cianeto – Combinado com hidrogénio e azoto, forma o ácido prússico, um líquido extremamente volátil. O cianeto gasoso emana um odor a amêndoas amargas. Pode ser encontrado em plásticos, nylon, papel, adesivos... Produz cefaleias, convulsões e paralisia respiratória.
Chumbo – Este metal pesado, maleável e de um tom cinzento-azulado pode ser encontrado em insecticidas, tintas e algumas canalizações. Causa irritabilidade, insónia, anemia e, em doses elevadas, cegueira e convulsões.
Etileno-glicol – Trata-se de um líquido viscoso, incolor e de sabor adoçicado que se pode encontrar nos anticongelantes líquidos para travões e em soluções para revelações fotográficas. Irrita a pele e as mucusas e causa lesões cerebrais e problemas cardíacos.
Flúor – Trata-se de um elemento do grupo dos halogénios, que se apresenta na forma de gás à temperatura ambiente. Está presente na água potável e na pasta de dentes. Em excesso no organismo, endurece os ossos e provoca deformações esqueléticas.
Mercúrio – Está presente em lâmpadas fluorescentes, pilhas, obturações dentárias, velhos termómetros e alguns peixes e mariscos. Uma intoxicação causada pelo metal, que adopta a forma líquida à temperatura ambiente, produz tremuras, psicoses e lesões nos rins.
Monóxido de carbono – Trata-se de um gás incolor e inodoro que se fixa à hemoglobina e impede a captação de oxigénio, o que produz falta de coordenação, perda de conhecimento e convulsões. Entre as fontes, incluem-se os aquecedores, fogões a gás, chaminés e tubos de escape, entre outros.
Nicotina – O alcalóide proveniente da planta Nicotiana tabacum é característico do tabaco. Um envenenamento por nicotina provoca alterações metabólicas, além de lesões neurológicas e renais.
Oxalato de cálcio – Algumas plantas ornamentais incluem este composto que cria cristais em forma de molhos de agulhas. Pode causar ardor, inflamação da língua e faringe, problemas digestivos e dificuldades respiratórias.

Venenos com usos médicos
Tirofiban – A mordedura da víbora Echis carinatus causa hemorragia interna e cerebral. Em 1998, a companhia farmacêutica Merck & Co. isolou do veneno um potente péptido anticoagulante e tratou-o para desenvolver o tirofiban (nome comercial: Aggrastat), eficaz na prevenção de ataques cardíacos em pacientes com risco elevado.
Exenatida – Os diabéticos de tipo II devem muito ao monstro-de-gila, o Heloderma suspectum. A partir de una proteína presente na saliva deste lagarto venenoso mexicano, uma equipa de endocrinologistas norte-americanos desenvolveu a exenatida (Byetta), que regula os níveis de insulina e glicose no sangue.
Captopril – Depois de serem mordidos por uma serpente jararaca-da-mata, Bothrops jararaca (na foto), os trabalhadores de algumas plantações brasileiras perdiam os sentidos, devido a uma descida súbita da tensão arterial. O estudo do veneno permitiu à companhia Squibb aperfeiçoar o captopril (Capoten), um eficaz hipotensor.
Eptifibatida – Fármaco fabricado pela Millennium Pharmaceuticals e “inspirado” no veneno da cascavel Sistrurus miliarius barbouri. Inibe a agregação das plaquetas.
Huachansu - Alguns médicos oncologistas chineses utilizam um veneno segregado na pele por certos sapos para tratar o cancro do fígado, do pulmão, do cólon e do pâncreas. O Instituto Nacional do Cancro norte-americano já iniciou ensaios clínicos com este fármaco promisor, a fim de decidir se será seguro importá-lo.
Ziconotida – Este fármaco baseia-se numa toxina produzida pelo caracol marinho Conus magus, que vive em águas tropicais. O molusco usa o veneno para paralisar os peixes que depois devora. A ziconotida (Prialt) é um analgésico não-narcótico utilizado para tratar as dores crónicas fortes em pacientes que não reagem aos analgésicos habituais.

Fonte:http://www.superinteressante.pt/index.php?

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