Países civilizados estão proibindo a pulverização aérea
O mito do uso seguro de agrotóxicos: 70 mil mortes ao ano por intoxicação
por Leomar Daroncho e Vanessa Martini* — publicado 03/05/2018 14h33, última modificação 03/05/2018 14h36
Banhos de veneno em escolas e os dados de intoxicados no trabalho demonstram que não devemos ceder ao discurso da produção a qualquer custo.
Abril foi o mês escolhido como alusivo à saúde e segurança no trabalho por conta de duas datas internacionais importantes: 7, dia mundial da saúde, e 28, dia mundial em memória das vítimas de acidentes e doenças do trabalho.
Os números oficiais de acidentes de trabalho no Brasil são estarrecedores. Dados do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho indicam que, entre 2012 e 2017, 15 mil trabalhadores engrossaram as estatísticas de vítimas fatais de acidentes de trabalho no Brasil.
Mas os dados reais são bem piores. No geral, a cada sete acidentes apenas um é notificado.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a notificação das intoxicações por agrotóxicos seja de apenas 2% dos casos. É grande o número de vítimas desconhecidas - mortas ou incapacitadas pela exposição ao veneno - em razão da dificuldade em fazer o diagnóstico.
A OIT e a OMS indicam que, nos países em desenvolvimento, anualmente há 70 mil intoxicados que chegam a óbito, além das doenças agudas, estimadas em 7 milhões de casos.
O descaso com os riscos da exposição ao veneno pode ser ilustrado pelo relato de uma professora de Primavera do Leste (MT): “Alguns alunos ficam esperando o ônibus e chegam a ficar com os cílios úmidos de veneno que são passados por aeronaves”. As crianças da região sofrem constantes “banhos de veneno” enquanto aguardam o transporte escolar.
A legislação permite a pulverização aérea. Exige, porém, que a área a ser pulverizada seja demarcada, impedindo a presença de trabalhadores ou qualquer pessoa no local.
O alardeado “uso seguro” não passa de um mito que embala campanhas publicitárias e o discurso de parlamentares comprometidos com a indústria química.
A utilização de biocidas justifica e impõe a observância de restrições e cautelas compatíveis com a gravidade das consequências conhecidas e esperadas. As urgências e os interesses que movem a ordem econômica, e a produção, não estão imunes à determinação constitucional de que seja assegurada a vida digna e a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental desses produtos.
O discurso que responsabiliza o trabalhador pelo não uso do Equipamento de Proteção Individual (EPI) encobre a discussão de que o aparato recomendável é incompatível com o clima quente e com as condições reais de trabalho.
Seria necessário, segundo os manuais, encapsular o trabalhador, com material impermeável, em jaleco de mangas longas, calças, luvas, botas, máscara, viseira e touca árabe. É fácil imaginar o quão insuportável seria utilizar essa parafernalha no clima quente e úmido das fronteiras agrícolas.
Além disso, o improvável EPI não garantiria a proteção, já que a contaminação pode ocorrer pelo contato com a roupa usada, inclusive na família do trabalhador, ou pelo consumo da água com resíduos.
Mesmo com esses riscos e com a fragilidade da fiscalização, o Brasil permite a utilização de pesticidas que são proibidos nos países de origem, como é o caso do paraquat e atrazina.
No Fórum de Luta Contra os Impactos dos Agrotóxicos do Sul do Mato Grosso há várias denúncias de pulverizações irregulares, desde cidades em que a própria Prefeitura utiliza o “mata mato” para a capina química, até pulverizações aéreas criminosas, em cima de escolas, cursos d’água ou áreas habitadas.
A nossa acanhada legislação é acusada de ser muito rígida, o que seria um obstáculo ao desenvolvimento. Porém, há enormes dificuldades para a fiscalização que, quando ocorre, costuma encontrar perigosas práticas ilegais.
Em Mato Grosso, foi regulamentada em 90 metros a distância mínima para a pulverização aérea. O parâmetro é insuficiente para preservar áreas habitadas, considerando a “deriva”, a ação do vento e as dificuldades operacionais.
Países civilizados estão proibindo a pulverização aérea. A França já proibiu para alguns produtos e pretende banir a prática até 2020.
É inadmissível que consideremos “normal” o exército de sequelados, conhecidos ou anônimos, e o relato da professora na região noroeste de Mato Grosso que confessou que promovia atividades lúdicas, quando ouvia o barulho da aeronave, para que as crianças, distraídas, não reclamassem de tonturas e vertigens provocadas pelo veneno.
A retórica do “uso seguro” do veneno é apenas um mito. Os banhos de venenos em escolas e os dados de intoxicados no trabalho estão a demonstrar que não devemos ceder ao discurso da produção a qualquer custo.
*Leomar Daroncho e Vanessa Martini são Procuradores do Trabalho
Fonte:https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-mito-do-uso-seguro-70-mil-mortes-por-intoxicacao-ao-ano
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